28 de agosto de 2008

Coisas para lembrar na hora de beijar um músico

Quase todos seus amigos, rolos e namorados foram músicos, e você decide que já chega. Aceita sair com um jornalista, desses que passam o dia inteiro metidos num terno. Para sua surpresa, não é que o cara é legal? Não fala de jornal, tem um humor impagável, um beijo ótimo e, quase sem perceber, vocês saem três vezes em oito dias. No quarto encontro, o convite fatídico: "Você não quer ir ao show da minha banda?" O cara é baixista e montou um grupo com jornalistas que cobrem política.

É claro que o mundo está cheio de homens que não são músicos e um tempo depois você descobre o circuito de festas trance da cidade. Nelas vai sempre um cara legal, bem bonito, papo ótimo. As festas são muito bacanas, ao ar livre, tá todo mundo dançando muito sem parar. Justamente um pouco antes do primeiro beijo, ele fala para você ir um dia a um encontro de amigos, ouvir o trance que ele compõe. Ele faz música.

Tem ainda aquele dia em que você sai para badalar, feliz porque vai encontrar todos os amigos, e não tem a intenção de paquerar viva alma. Mas aí aparece um sujeito que parece tão legal, mas tão legal, que você está dentro daquele buraco escuro bacana chamado Gate's e consegue até achar que o cara tem uma luminosidade especial. Vocês trocam uns olhares simpáticos, o que dentro do Gate's só pode ter um significado, e logo estão conversando animadamente. Leva meia hora para descobrir que já foi num show dele.



Há algo sobre sair com músicos. Segundo a mitologia grega, eles são uma roubada. Orfeu foi o músico mais famoso de sua época. Seu mito encerra a história de um homem que entende tudo sobre amor, mas não teve a coragem necessária para vivê-lo. Casado com Eurídice, perde a mulher quando ela está fugindo assustada das investidas apaixonadas de um pastor ensandecido e pisa em uma cobra, que a pica no calcanhar.

Orfeu desce até o reino de Hades, o deus grego das profundezas, ou o Diabo, para os católicos. Com sua música, quebra todas as resistências e entra onde os vivos jamais podem chegar. Hades lhe concede a mulher de volta, com a condição de que a guie para a terra sem, em hipótese alguma, olhar para trás. E não é que o mané, no meio do caminho, fica na dúvida e olha? Eurídice se desfaz e some na frente dele, para sempre.

Ele toca como ninguém o coração dos homens com sua música. Faz todo mundo sentir um monte de coisas. As coisas que ele não conseguiu viver, mas consegue comunicar com um dom pouco comum.

Este texto é sobre sair com músicos. E já começa com a citação de uma tragédia grega. Depois volto a ela. Em termos pragmáticos, o que importa é lembrar, quando se topa com um deles, que a música, de todas as artes, é a que tem a relação mais estreita com corações partidos.

As relações com músicos têm, obviamente, prós e contras. Como não tenho conhecimento acumulado sobre advogados, médicos, padeiros ou nutricionistas, estou aqui escrevendo sobre isso. O primeiro ponto positivo, aliás, pode ser explicado por uma comparação entre categorias de homens. Você pode sair com um advogado e ele vai ter o maior interesse em dividir contigo tudo o que aprendeu nessa carreira. Contar casos impressionantes sobre o sistema de justiça. Pode virar seu amigo e, num futuro qualquer, te ajudar um monte diante de diferentes situações que envolvem a lei. Isso tudo é bacana, mas pontual.

O conhecimento acumulado dos músicos tem uma aplicação prática imediata e que fica com você para sempre. Todos eles vêm com anos de pesquisa musical e têm a maior felicidade em dividi-la. Cinco, dez, quinze anos de trabalho intenso em lojas de disco, diante da televisão e consumido literatura especializada estão todos registrados em uma discografia pronta para ser apreciada por você. E cada um tem um gosto. Dá para aprender sobre pop, punk, jazz, rock. Qualquer coisa.

Pela razão citada acima, eles sempre dão bons presentes.

Outra vantagem comparativa dos músicos diante de outras categorias masculinas é a inexplicável facilidade com que trocam de rolos e namoradas uns entre os outros. Não que façam isso de maneira bem resolvida e sem estresse, pelo contrário. Mas pelo menos fazem. Os músicos estão um passo a frente dos demais homens na direção de se libertarem do estereótipo que prende a imagem das mulheres, dentro de um determinado grupo, a seus ex-namorados, rolos, etc. Aquele velho e atual conceito de propriedade. Não tenho a menor idéia de por que isso acontece, mas o mundo da música tem um quê de seriado americano de baixa qualidade. Tipo "Barrados no Baile", onde todos os personagens acabam se namorando em algum momento da série e onde, quando não tem mais nenhuma combinação para fazer entre eles, sempre entra um personagem novo na estória, começando tudo outra vez.

Existem desvantagens, é claro. E as desvantagens das pessoas só aparecem com o tempo. Assim, desvantagens serão citadas aqui circunscritas a apenas uma das formas de se relacionar com um músico: o namoro. Voltando aos gregos, músicos precisam de musas. Sem musa, não tem música. Musas têm que ser algo perfeito, idealizado e inatingível. Senão, a música sai ruim. Logo, em geral, a namorada não pode ser uma musa, a menos que transforme a relação em uma espécie de tortura sofrida permanente e cruel (isso também inspira boas músicas). Os músicos, enfim, estão quase sempre apaixonados por mais de uma pessoa ao mesmo tempo. Têm uma relação estranhíssima de amor com essas mulheres inatingíveis que preenchem todos os seus sonhos, justamente porque elas são inatingíveis, e esse amor transborda deles nos momentos mais impróprios, criando situações bastante inusitadas dentro de um namoro. A musa pode ser a garota que freqüenta o bar aonde você vai, pode ser a namorada de um amigo dele, um rolo antigo ou a Luana Piovani. Dá no mesmo. O impressionante é assistir o amor dele por ela tomar conta de todas as expressões do sujeito, antes de ser engolido, virar melancolia e, depois, música. É uma das coisas mais esquisitas do mundo.

O que interessa é que têm um componente de sensibilidade muito grande. Essa sensibilidade é, no final, o que os fez encontrar a música. É claro que a sensibilidade não é exclusividade dos músicos (ainda bem). Mas é bem comum entre eles. E não existe nada mais bonito no mundo inteiro do que um homem sensível. Logo, os músicos são bonitos. Convivem sensivelmente com todas as porcarias com as quais todos convivemos, dentro e fora da gente. São uma roubada que, no fim das contas, vale a pena. Como todas as histórias entre homens e mulheres, homens e homens, mulheres e mulheres, vividas por uma noite, alguns minutos, meses, semanas ou anos: as roubadas mais interessantes da nossa existência

18 de agosto de 2008

Perdas


Nunca fui de perder coisas. As coisas é que costumam se perder de mim. Quando pequena, perdi o par de tênis amarelo da minha Barbie. Eu já não gostava muito dela justamente porque usava tênis. Eu nunca gostei de tênis. Era uma Barbie esportiva e eu não conseguia entender o que deu na cabeça do meu pai para comprar uma Barbie esportiva. Eu gostava mesmo era das Barbies glamourosas, de longos e brilhantes vestidos cor-de-rosa. Ele me deu a Barbie pouco antes da mudança. E eu fiz questão que ela fosse de caminhão. Não ocuparia o lugar dos brinquedos privilegiados, que atravessariam a jornada ao meu lado, no carro. Quando chegamos ao destino e os transportadores largaram a caixa de brinquedos em meu quarto, corri trêmula até ela, com um pressentimento feminino que se manifestava precoce demais para uma menina ainda tão menina... Mas ufa, a Barbie estava lá. Mas não os tênis. A boneca estava descalça. E pior do que uma Barbie esportiva era uma Barbie esportiva sem tênis. Sem sentido. Sem razão. É claro que me culpei, é claro que passei o resto dos anos observando a boneca descalça e me condenando pelo descaso. Os pés nus eram prova do meu espírito desavergonhado. Testemunhas das minhas primeiras escolhas imorais.

Perdi algumas outras coisas depois disso. Brincos e pulseiras de ouro na praia (de cada par guardo a peça que se salvou). O Mundo de Sofia (da vez que li guardo a surpresa da identificação). E perco o ônibus praticamente todos os dias. Perdas, perdas, perdas. Inexplicáveis, inaceitáveis, imperdoáveis perdas. Continuo desconfiada de que as coisas é que se perdem de mim.

E para onde foi tudo o que da minha guarda escapou? Quais outros pés os tênis amarelos vestiram? Que outra menina contemplou, desconsolada, um brinco sem par? Que outro leitor se viu dentro do mundo que guardava o Mundo de Sofia? Eis que a razão da perda está no encontro.

Perdi tão poucas coisas que lembro de cada uma delas com dor. Sou taurina a ponto de manter as gavetas entupidas de mim, talvez por medo de esquecer o que sou. Guardo pedaços do mundo para entregar aos meus filhos. Recolho as perdas dos outros com pesar. Volto três vezes para me conferir. Espio embaixo da cama para me achar.

Porém, entre todas as coisas que nunca perdi, há uma que adoraria esquecer em algum banco de metrô: o medo de perder. A proteção que criei em torno do que é supostamente meu. Perder é mudar, perder é transformar, perder é, acima de tudo, renovar. Tem coisa que a gente perde e parece que não era para perder. Mas era, sim. Quando perdemos, recriamos a perda. Recauchutamos o velho. Renovamos o ar. Quando perdemos, reviramos tudo de cabeça para baixo e, depois, nada volta para o mesmo lugar. Perder o medo de perder queima calorias. Faz sentir mais leve. Alivia o peso nas costas. Equilibra a pressão. Perder o medo de perder faz andar mais longe e enxergar melhor. Perder o medo de perder faz olhar para os lados e ainda por cima aumenta as chances de esbarrar na felicidade (assim mesmo, por acaso). Perder o medo de perder faz a gente andar descalços na areia e correr contra o vento, perdendo apenas o que já não se tem.

Ter coragem para perder faz encontrar o que nem ousávamos procurar. Mas que certamente alguém deixou cair.

13 de agosto de 2008

Sobre amor, ódio e indiferença


Tratamos mal quem nos trata mal. Desprezo é para inimigos e invejosos. E ninguém que ama de verdade consegue ter conforto quando isso vem do outro lado. O contrário do bonito é feio, de rico é pobre, de preto é branco, isso se aprende antes de entrar na escola. Se você fizer uma enquete entre as crianças, ouvirá também que o contrário do amor é ódio. Faça uma enquete entre adultos e descubra que a resposta correta é indiferença. Isso mesmo. o contrário de amor é a indiferença.

O que seria preferível, que a pessoa que você ama passasse a te odiar, ou que lhe fosse totalmente indiferente? Que perdesse o sono imaginando maneiras de fazer você se dar mal ou que dormisse feito um anjo a noite inteira, esquecido por completo da sua existência? O ódio é também uma maneira de se estar com alguém. A indiferença, por sua vez, não aceita declarações ou reclamações. Seu nome simplesmente não consta mais no cadastro.

Para odiar alguém, precisamos reconhecer que esse alguém existe e que nos provoca sensações, por piores que sejam. Para odiar alguém, gastamos energia, neurônios e tempo. Odiar nos dá fios brancos no cabelo, rugas no rosto e angústia no peito. Para odiar, necessitamos do objeto do ódio, precisamos dele nem que seja para dedicar-lhe todo o nosso rancor, ira, a nossa pouca sabedoria para entendê-lo e pouquíssimo humor para aturá-lo. O ódio se tivesse uma cor, seria vermelho, como o amor.

Já para sermos indiferentes a alguém precisamos de quê? De coisa alguma. A pessoa em questão pode saltar de bungee jump, assistir aula de fraque, ganhar um Oscar ou uma prisão perpétua, estamos nem aí. Não julgamos seus atos, não observamos seus modos, não testemunhamos sua existência. Ela não nos exige olhos, boca, coração, cérebro: nosso corpo ignora sua presença, e muito menos se dá conta de sua ausência. Não temos o número do telefone das pessoas para quem não ligamos. A indiferença se tivesse uma cor, seria cor da água, cor do ar, cor de nada. A indiferença é um exílio no deserto.

11 de agosto de 2008

Boas vindas

Valentina Rosseli é a imortal criação do desenhista italiano Gudo Crepax. Ela , no entanto, não é apenas uma personagem qualquer mas sim , uma personagem moderna, intelectualmente muito bem resolvida... Algumas das frases que estão presentes em suas histórias.

E eu não sou muito diferente dela.